sábado, 23 de junho de 2018

Havia terra neles, e
Eles escavavam.
Escavavam, escavavam, e assim
o dia todo, a noite toda. E não louvavam a Deus
que, como ouviram, queria isso tudo
que, como ouviram, sabia isso tudo

Eles escavavam e não ouviam mais
Não se tornaram sábios, não inventaram canção alguma
Não imaginaram linguagem alguma
Eles escavavam
Veio um silêncio, veio também uma tempestade
Vieram todos os mares

Eu escavo, tu escavas e escava também o verme
E quem aí canta diz: eles escavam

Oh alguém, oh nenhum, oh ninguém, oh você
Para que lugar foi, senão a lugar algum?
Oh você escava e eu escavo, e eu me escavo rumo a ti
E no dedo desperta-nos o anel.
Paul Celan

Poderíamos começar por nos perguntar sobre que situação epocal é esta na qual tentar aproximar-se de alguém através do amor deve ser descrito como um ato de escavar. Pois, se um dia o amor foi comparado a uma terra firme, aproximá-lo do ato de escavar indica que agora estamos diante de terra em excesso, terra demais que soterrou os amantes na distância do que se petrifica, do que volta à inércia, daquilo com o qual cobrimos os mortos. Mas a escavação, da qual Celan fala, parece não se contentar em desterrar o que estava soterrado, como se fosse ação ligada à justificação de sua utilidade. Ela quer se apresentar como o gesto elementar de uma repetição bruta, dessas que não nos tornam mais sábios, que não nos levam a inventar canção alguma, a imaginar linguagem alguma. Repetição que parece estar no lugar de uma prece, que se repete secamente. "Eles escavam", diz o poema em todos seus momentos: pois há de se repetir a ação em ritmo de prece, sentindo o peso impredicado do que não tem tempo, do que se faz o dia todo e a noite toda porque é indiferente à existência do dia ou da noite, é indiferente ao passar do dia e da noite. Tempo que destrói o dia e a noite em uma indiferença soberana. Tempo que se repete, que não se rememora.
Repetir-se sem louvar a Deus pois os amantes que escavam não esperam desterrar unidade alguma, nem esperam algo além de sua ciência e escuta. Não se louva a Deus porque Deus não vela mais pelos amantes na garantia destinal da reconciliação, ele sequer os observa. No desamparo de não ter quem os vele, os amantes escavam até encontrar esse estado no qual se ouve tanto o silêncio quanto se vê a tempestade, Still e Sturm: aliteração que nos lembra como, do fundo, vem o momento no qual os afetos opostos desabam em um ponto de indistinção. Veio a indistinção entre o silêncio e a tempestade e, lá onde o silêncio berra e a tempestade cala, algo de impossível irrompe: a abertura da infinitude de todos os mares diante dos amantes.
Todos os mares - há de se ter muito espaço para a grandeza intensiva de todos os mares. Mas alguém poderia ter a péssima ideia de se perguntar: o que se sente diante de todos os mares? O sublime dinâmico que mostra a excelência de nossa destinação, seria possível dizer. Mas então o que faz lá o verme? Pois, diante de todos os mares, há eu, há tu e há o verme, esse intruso nem um pouco sublime que, no entanto, lembra que todos os mares são também terra, matéria que se escava o dia todo, a noite toda. Momento em que o material do poema se atrofia até se transformar em uma impessoal e inexpressiva regra de conjugação verbal (ich grabe, du gräbst und es gräbt...) que irrompe no momento mais sublime das imagens. Ich, du und es: a primeira, a segunda e a terceira pessoa, mas uma terceira pessoa impessoal, tão democrática quanto o verme que corrói todas as carnes, a minha e a sua, em uma indistinção, ao mesmo tempo, originária e final. Terceira pessoa na qual se quebram as fusões dos mares e que talvez lembre como todos os mares, ao final, estão lá para nos despossuir. Nos fazer passar de alguém a ninguém nos faz passar de quem se conta (oh einer + einer + einer) a quem não se conta mais (niemand). De alguém que ainda é uma pessoa, a respeito da qual se pode dizer algo, a ninguém: este, despossuído de predicados; este, que pergunta para onde você foi se não há lugar para ir.
E nesse momento em que não há mais o que escavar, pois não há mais lugar para ir, não há mais direção, então até a mais elementar regra gramatical de conjugação verbal produz o que só pode ser produzido na consciência absoluta da disjunção, no retraimento dos deuses e dos mares e de todos os que um dia prometeram velar pelos amantes. O material gasto e elementar produz aneis que despertam dos dedos mostrando como a disjunção dessacralizada do amor consegue nos fazer passar da impotência à imagem do impossível. Quando a disjunção tudo implode, ainda que o desejo persista em sua força bruta de prece, há um anel que brota nos dedos dos amantes.
Mas, para que os aneis brotem, é necessário que a língua toque o impossível, que ela conjugue de uma forma que a gramática não permite conjugar: ich grab mich, eu me escavo. Nunca a língua viu ação semelhante. Eu me escavo porque há terra em mim, a mesma que soterra você. E a primeira escavação é a da língua que precisa deixar de comunicar para passar a escavar a si mesma, desmontar suas pŕoprias regras como quem desconstrói casas na superfície para encontrar vestígios de outros tempos no subsolo. É só através de uma torção da língua que os amantes produzem aquilo de que são capazes.

SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2ªEd. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

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