I
Procurei-me
nesta água da minha memória
que
povoa todas as distâncias da vida
e
onde, como nos campos, se podia semear, talvez,
tanta
imagem capaz de ficar florindo...
Procurei
minha forma entre os aspectos das ondas,
para
sentir, na noite, o aroma da minha duração.
Compreendo
que, da fronte aos pés, sou de ausência absoluta:
desapareci
como aquele — no entanto, árduo — ritmo
que,
sobre fingidos caminhos,
sustentou
a minha passagem desejosa.
Acabei-me
como a luz fugitiva
que
queimou sua própria atitude
segundo
a tendência do meu pensamento transformável.
Desde
agora, saberei que sou sem rastros.
Esta
água da minha memória reúne os sulcos feridos:
as
sombras efêmeras afogam-se na conjunção das ondas.
E
aquilo que restaria eternamente
é
tão da cor destas águas,
é
tão do tamanho do tempo,
é
tão edificado de silêncios
que,
refletido aqui,
permanece
inefável.
II
Voz
obstinada, por que insistes chamando
por
um nome que não corresponde mais a mim?
Não
é do meu propósito que fiques ao longe sozinha.
Nem
tu sabes que espécie de saudade abrolha na noite
e
como o silêncio tenta mover-se inutilmente,
quando
diriges teus ímãs sonoros,
sondando
direções!
Não
é do meu propósito, ó voz obstinada,
mas
da minha condição.
As
aparências dispersaram-se de mim,
como
pássaros:
que
sol se pode fixar nesta existência,
para
te definir a minha aproximação?
Minhas
dimensões se aboliram nos limites visíveis:
como
podes saber onde me circunscrevo,
e
de que modo me pode o teu desejo atingir?
Eu
mesma deixei de entender a minha substância;
tenho
apenas o sentimento dos mistérios que em mim se equilibram.
Como
podes chamar por mim como às coisas concretas,
e
assegurar-me que sou tua Necessidade e teu Bem?
III
Para
experiência do teu contentamento,
crio
formas que vistam meus pensamentos irreveláveis,
e
modelo fisionomias com que te possa aparecer.
Pisarei
minha solidão com renúncia e alegria
e,
por entre caminhos assombrados,
resoluta
virei até onde te encontres,
cortando
as sombras que crescem como florestas.
Eu
mesma me sentirei alucinada e esquisita,
com
esse alento das nebulosas sinistras
que
se desenvolvem nas febres.
Não
saberei precisamente quando me verás,
nem
se compreenderei a linguagem que falas,
e
os nomes que têm as tuas realidades
e
o tempo dos outros acontecimentos...
Mas
o que, desde agora, sinto e sei com firmeza
é
que tua voz continuará chamando por mim, obstinada,
embora
eu não possa estar mais perto nem mais viva,
e
se tenha acabado o caminho que existe entre nós,
e
eu não possa prosseguir mais...
IV
A
água da minha memória devora todos os reflexos.
Desfizeram-se,
por isso, todas as minhas presenças
e
sempre se continuarão a desfazer.
É
inútil o meu esforço de conservar-me;
todos
os dias sou meu completo desmoronamento:
e
assisto à decadência de tudo,
nestes
espelhos sem reprodução.
Voz
obstinada que estás ao longe chamando-me,
conduze-te
a mim, para compreenderes minha ausência.
Traze
de longe os teus atributos de amargura e de sonho,
para
veres o que deles resta
depois
que chegarem a estes ermos domínios
onde
figuras e horas se decompõem.
Não
precisaremos falar mais nem sentir:
seremos
só de afinidades: morrerão as alegorias.
E
saberás distinguir as coisas que perecem desoladas,
olhando
para esta água interminável e muda,
que
não floriu, que não palpitou, que não produziu,
de
tanto ser puramente imortal...
MEIRELES, Cecília. Obra poética. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: J. Aguilar, 1972.
MEIRELES, Cecília. Obra poética. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: J. Aguilar, 1972.
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