domingo, 21 de outubro de 2018

Biscoito & Bolacha

São raras as vezes em que nos emaranhamos com tanto vigor em discussões ricas como a que diz respeito à nomenclatura de um dos artigos culinários e de consumo mais presentes em nosso cotidiano: o Biscoito ou a Bolacha. O imbróglio não é recente e certamente remonta à teimosia dos bandeirantes vinda de encontro à resistência dos povos nativos e diaspóricos. O conflito contemporâneo, porém, não deixa pistas definitivas de quem é o colonizador, já que ambos os defensores de um e outro termo ambicionam impô-lo sem contestação aos demais. Se alguém tenta conciliar a questão sugerindo a complexidade das variações linguísticas e defendendo o respeito mútuo dos usos, mal se passam dois minutos e algum dos estandartes é erguido – Bolacha! – Não, Biscoito! E lá se vão duas horas, dois dias, duas vidas para o além sem que se tenha encontrado paz.
É certo que há quem participe de tais debates, hoje vivos em quase todo território nacional, com o frio objetivo de testemunhar o malabarismo retórico com que cada um defende seu lado ou, em outros casos, de meramente se divertir com a ridícula desproporção própria às rivalidades supérfluas. Estes, sabiamente (isto é, tendo em vista seu propósito), aguardam a restauração do silêncio para obstruí-lo novamente, como quando um carro lembra aos outros de que a buzina existe, em meio ao engarrafamento: “Biscoito!”, “Bolacha!”, e a orquestra retoma o pulso.
Apesar da aparente banalidade da controvérsia, a maioria não só mergulha num sofrimento mudo diante da polêmica insolúvel como também acaba perdendo muito por constatar um problema dessa magnitude reduzido a uma oposição binária exclusivista. Sei de pessoas que só passam a conversar com outras depois de checarem minuciosamente se estas são partidárias do nome que lhes convém. Caso contrário, dão a elas no máximo um bom dia acompanhado de um sorriso amarelo, evitam dividir o mesmo espaço, etc. Em circunstâncias mais extremas, chega-se à completa excomunhão social, sustentada numa figuração do outro como absolutamente abominável. Isso faz com que muita gente que nem dá tanta importância a essas distinções se veja obrigada a se posicionar antes mesmo de saber do que está falando, só para ganhar a confiança de quem almeja amizade.
Para solucionar o impasse há quem recorra aos clássicos. Cheguei a conhecer uma pessoa, que se dizia aristotélica, que defendia a seguinte fórmula, de acordo com a teoria das quatro causas:
- Bolacha é a forma, a causa formal. Já reparou que toda a bolacha é assim, ó, amassada? Dizia ele, fazendo um gesto de encontro vertical entre as palmas da mão. Já o Biscoito é a receita, a causa material, que não precisa sair achatado, como o biscoito de polvilho. O Biscoiteiro, demiurgo dessa maravilha, continuou enquanto retirava uma unidade do produto de seu pacote, é a causa eficiente… E, olhando para mim de um jeito artimanhoso, arrematou: finalmente, a causa final – e abocanhou de vez aquele objeto especulativamente indigesto.
Então se trataria de mais uma querela entre formalistas e materialistas? Pedi-lhe que me mostrasse a fonte de sua argumentação, ao que ele prontamente se dispôs, retirando a Metafísica da estante e me indicando o trecho em que o estagirita expõe sua tese. No entanto, notei que a causa formal – a quididade do ser –, para Aristóteles, não é apenas mais uma entre as quatro causas, sendo hierarquicamente superior às outras. Nisto, intuí o motivo de sua predileção pelo termo correspondente e fiquei frustrado. E com fome, não sei dizer de quê.

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