sábado, 8 de maio de 2021

Trecho de Na colônia penal (1914), Franz Kafka


– Nossa sentença não soa severa. O mandamento que o condenado infringiu é escrito no seu corpo com o rastelo. No corpo deste condenado, por exemplo – o oficial apontou para o homem –, será gravado: Honra o teu superior!

O explorador levantou fugazmente os olhos na direção do homem; este manteve a cabeça baixa quando o oficial apontou para ele, parecendo concentrar toda a energia da audição para ficar sabendo de alguma coisa. Mas o movimento dos seus lábios protuberantes e comprimidos mostrava claramente que não conseguia entender nada. O explorador queria perguntar diversas coisas, mas à vista do homem indagou apenas:

– Ele conhece a sentença?

– Não – disse o oficial, e logo quis continuar com as suas explicações.

Mas o explorador o interrompeu:

– Ele não conhece a própria sentença?

– Não – repetiu o oficial e estacou um instante, como se exigisse do explorador uma fundamentação mais detalhada da sua pergunta; depois disse:

– Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentá-la na própria carne.

O explorador já estava querendo ficar quieto quando sentiu que o condenado lhe dirigia o olhar; parecia indagar se ele podia aprovar o procedimento descrito. Por isso o explorador, que já tinha se recostado, inclinou-se de novo para a frente e ainda perguntou:

– Mas ele certamente sabe que foi condenado, não?

– Também não – disse o oficial e sorriu para o explorador, como se ainda esperasse dele algumas manifestações insólitas.

– Não – disse o explorador passando a mão pela testa. – Então até agora o homem ainda não sabe como foi acolhida sua defesa?

– Ele não teve oportunidade de se defender – disse o oficial, olhando de lado como se falasse consigo mesmo e não quisesse envergonhar o explorador com o relato de coisas que lhe eram tão óbvias.

– Mas ele deve ter tido oportunidade de se defender – disse o explorador erguendo-se da cadeira.

O oficial se deu conta de que corria perigo de ser interrompido por longo tempo na explicação do aparelho; por isso caminhou até o explorador, tomou-o pelo braço, indicou com a mão o condenado, que agora se punha em posição de sentido, já que a atenção se dirigia a ele com tanta evidência – o soldado também deu um puxão na corrente –, e disse:

– As coisas se passam da seguinte maneira. Fui nomeado juiz aqui na colônia penal. Apesar da minha juventude. Pois em todas as questões penais estive lado a lado com o comandante e sou também o que melhor conhece o aparelho. O princípio segundo o qual tomo decisões é: a culpa é sempre indubitável. Outros tribunais podem não seguir esse princípio, pois são compostos por muitas cabeças e além disso se subordinam a tribunais mais altos. Aqui não acontece isso, ou pelo menos não acontecia com o antigo comandante. O novo entretanto já mostrou vontade de se intrometer no meu tribunal, mas até agora consegui rechaçá-lo – e vou continuar conseguindo. O senhor queria que eu lhe esclarecesse este caso; é tão simples como todos os outros. Hoje de manhã um capitão apresentou a denúncia de que este homem, que foi designado seu ordenança e dorme diante da sua porta, dormiu durante o serviço. Na realidade ele tem o dever de se levantar a cada hora que soa e bater continência diante da porta do capitão. Dever sem dúvida nada difícil, mas necessário, pois ele precisa ficar desperto tanto para vigiar como para servir. Na noite de ontem o capitão quis verificar se o ordenança cumpria o seu dever. Abriu a porta às duas horas e o encontrou dormindo todo encolhido. Pegou o chicote de montaria e vergastou-o no rosto. Ao invés de se levantar e pedir perdão, o homem agarrou o superior pelas pernas, sacudiu-o e disse: “Atire fora o chicote ou eu o engulo vivo!”. São estes os fatos. Faz uma hora o capitão se dirigiu a mim, tomei nota das suas declarações e em seguida lavrei a sentença. Depois determinei que pusessem o homem na corrente. Tudo isso foi muito simples. Se eu tivesse primeiro intimado e depois interrogado o homem, só teria surgido confusão. Ele teria mentido, e se eu o tivesse desmentido, teria substituído essas mentiras por outras e assim por diante. Mas agora eu o agarrei e não o largo mais. Está tudo esclarecido? Mas o tempo está passando, a execução já deveria começar e ainda não acabei de explicar o aparelho.

[…]


Tradução: Modesto Carone

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Meu nome


I

Tudo seguia tranquilo
muito tranquilo
o murmúrio lá fora dizia
que tudo seguia bastante tranquilo

então fiquei calmo e sereno
qual superfície de um rio bem tranquilo
ou feito a pessoa sentada sem pressa
à margem do curso de um rio bem tranquilo
ouvindo somente o murmúrio dizendo
que tudo seguia bastante tranquilo
e aquilo era fácil de se constatar
no espelho sereno das águas do rio

seria impreciso ou sem força dizer:
não sei quanto tempo essa calma durou?

É que de repente – que coisa espreitava
do espelho sereno das águas do rio? –
uma voz lá de dentro chamou por meu nome:
um nome que eu nunca cheguei a ouvir
um nome que eu não sei nem pronunciar
um nome que eu não imaginava existir
era o meu nome que vinha de dentro
do espelho sereno das águas do rio

Não mais o murmúrio,
apenas um grito
contínuo
vibrando
vibrando –

as coisas tremendo
o grito ecoando
feito uma faca:

era o meu nome

II

Ninguém escolhe o nome que tem, mas é nele que pensam quando lembram de alguém.

III

Tomara que os nomes sempre nos lembrem do que é feita sua matéria: violência.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Eu estava subindo uma montanha até que encontrei uma pedra razoavelmente grande, mais ou menos do meu tamanho. Mas ela era tão macia que esqueci do caminho, fiquei lá abraçado com ela. Ela não falava muito e quando falava era sobre comunhão etc, então mostrei pra ela constelações que tinha decorado e riscamos na areia alguns conceitos de geometria euclidiana. Estávamos no meio da mata, dissolutos, sob a orquestra dos seres da noite, quando adormecemos.
Sonhei que estava trancado no banheiro e a privada era um caldeirão de onde saía uma fumaça inodora; ao meu lado, um cheff sem parte da cabeça, que aparentemente havia sido mordida por algum ser de boca enorme, me ensinava a receita da luta propriamente dita. Ele me dizia, com sotaque espanhol: cultivar o deserto como um pomar às avessas.
Despertei imóvel e macio. Tentei olhar pra noite, mas era uma noite sem céu. Aos poucos fui constatando que eu estava dentro da pedra. Não tardei a perceber que era só pensar em nada que eu conseguia ver lá fora. Logo amanheceu. Ao longe senti o chão ser pisado por um ser razoavelmente grande, que mal se aproximou já começou a me abraçar.

Mariana - MG, julho de 2016

David Hume sobre a paixão e a razão

"Nada é mais comum na filosofia, e mesmo na vida corrente, que falar no combate entre a paixão e a razão, dar preferência à razão e afirmar que os homens só são virtuosos quando se conformam a seus preceitos. Afirma-se que toda criatura racional é obrigada a regular suas ações pela razão; e se qualquer outro motivo ou princípio disputa a direção de sua conduta, a pessoa deve se opor a ele até subjugá-lo por completo ou, ao menos, até torná-lo conforme àquele princípio superior. A maior parte da filosofia moral, seja antiga ou moderna, parece estar fundada nesse modo de pensar. E não há campo mais vasto, tanto para argumentos metafísicos como para declamações populares, que essa suposta primazia da razão sobre a paixão. A eternidade, a invariabilidade e a origem divina da razão têm sido retratadas nas cores mais vantajosas; a cegueira, a inconstância e o caráter enganoso da paixão foram salientados com o mesmo vigor. Para mostrar a falácia de toda essa filosofia, procurarei provar, primeiramente, que a razão, sozinha, não pode nunca ser motivo para uma ação da vontade; e, em segundo lugar, que nunca poderia se opor à paixão na direção da vontade.

O entendimento se exerce de dois modos diferentes, conforme julgue por demonstração ou por probabilidade; isto é, conforme considere as relações abstratas entre nossas idéias ou as relações entre os objetos, que só conhecemos pela experiência. Como seu domínio próprio é o mundo das ideias, e como a vontade sempre nos põe no mundo das realidades, a demonstração e a volição parecem estar, por esse motivo, inteiramente separadas uma da outra. É verdade que a matemática é útil nas operações mecânicas, e a aritmética, em quase todas as artes e profissões. Mas não é por si mesmas que elas têm influência. A mecânica é a arte de regular os movimentos dos corpos para alguma finalidade ou propósito; e a única razão de empregarmos a aritmética para determinar as proporções dos números é porque, com ela, podemos descobrir as proporções da influência e operação destes. O comerciante deseja conhecer a soma total de suas contas com alguém. E por quê? Porque assim poderá saber que [a] soma, ao pagar sua dívida e ir ao mercado, terá os mesmos efeitos que todas as parcelas individuais tomadas em conjunto. O raciocínio abstrato ou demonstrativo, portanto, só influencia nossas ações enquanto dirige nosso juízo sobre causas e efeitos. Isso nos leva à segunda operação do entendimento.

É evidente que, quando temos a perspectiva de vir a sentir dor ou prazer por causa de um objeto, sentimos, em consequência disso, uma emoção de aversão ou de propensão, e somos levados a evitar ou a abraçar aquilo que nos proporcionará esse desprazer ou essa satisfação. Também é evidente que tal emoção não se limita a isso; ao contrário, faz que olhemos para todos os lados, abrangendo qualquer objeto que esteja conectado com o original pela relação de causa e efeito. É aqui, portanto, que o raciocínio tem lugar, ou seja, para descobrir essa relação; e conforme nossos raciocínios variam, nossas ações sofrem uma variação subsequente. Mas é claro que, neste caso, o impulso não decorre da razão, sendo apenas dirigido por ela. É a perspectiva de dor ou prazer que gera a aversão ou propensão ao objeto; e essas emoções se estendem àquilo que a razão e a experiência nos apontam como as causas e os efeitos desse objeto. Nunca teríamos o menor interesse em saber que tais objetos são causas e tais outros são efeitos, se tanto as causas como os efeitos nos fossem indiferentes. Quando os próprios objetos não nos afetam, sua conexão jamais pode lhes dar uma influência; e é claro que, como a razão não é senão a descoberta dessa conexão, não pode ser por meio dela que os objetos são capazes de nos afetar.

Uma vez que a razão sozinha não pode produzir nenhuma ação nem gerar uma volição, infiro que essa mesma faculdade é igualmente incapaz de impedir uma volição ou de disputar nossa preferência com qualquer paixão ou emoção. Essa é uma consequência necessária. A única possibilidade de a razão ter esse efeito de impedir a volição seria conferindo um impulso em direção contrária à de nossa paixão; e esse impulso, se operasse isoladamente, teria sido capaz de produzir a volição. Nada pode se opor ao impulso da paixão, ou retardá-lo, senão um impulso contrário; e para que este impulso contrário pudesse alguma vez resultar da razão, esta última faculdade teria de exercer uma influência original sobre a vontade e ser capaz de causar, bem como de impedir, qualquer ato volitivo. Mas se a razão não possui uma influência original, é impossível que possa fazer frente a um princípio com essa eficácia, ou que possa manter a mente em suspenso por um instante sequer. Vemos, portanto, que o princípio que se opõe a nossa paixão não pode ser o mesmo que a razão. Quando nos referimos ao combate entre paixão e razão, não estamos falando de uma maneira filosófica e rigorosa. A razão é, e deve ser, apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além de servir e obedecer a elas."

Tratado da natureza humana, trad. Débora Danowski, Unesp, p. 448-450 (Livro 2, parte 3, seção 3)

domingo, 21 de outubro de 2018

Biscoito & Bolacha

São raras as vezes em que nos emaranhamos com tanto vigor em discussões ricas como a que diz respeito à nomenclatura de um dos artigos culinários e de consumo mais presentes em nosso cotidiano: o Biscoito ou a Bolacha. O imbróglio não é recente e certamente remonta à teimosia dos bandeirantes vinda de encontro à resistência dos povos nativos e diaspóricos. O conflito contemporâneo, porém, não deixa pistas definitivas de quem é o colonizador, já que ambos os defensores de um e outro termo ambicionam impô-lo sem contestação aos demais. Se alguém tenta conciliar a questão sugerindo a complexidade das variações linguísticas e defendendo o respeito mútuo dos usos, mal se passam dois minutos e algum dos estandartes é erguido – Bolacha! – Não, Biscoito! E lá se vão duas horas, dois dias, duas vidas para o além sem que se tenha encontrado paz.
É certo que há quem participe de tais debates, hoje vivos em quase todo território nacional, com o frio objetivo de testemunhar o malabarismo retórico com que cada um defende seu lado ou, em outros casos, de meramente se divertir com a ridícula desproporção própria às rivalidades supérfluas. Estes, sabiamente (isto é, tendo em vista seu propósito), aguardam a restauração do silêncio para obstruí-lo novamente, como quando um carro lembra aos outros de que a buzina existe, em meio ao engarrafamento: “Biscoito!”, “Bolacha!”, e a orquestra retoma o pulso.
Apesar da aparente banalidade da controvérsia, a maioria não só mergulha num sofrimento mudo diante da polêmica insolúvel como também acaba perdendo muito por constatar um problema dessa magnitude reduzido a uma oposição binária exclusivista. Sei de pessoas que só passam a conversar com outras depois de checarem minuciosamente se estas são partidárias do nome que lhes convém. Caso contrário, dão a elas no máximo um bom dia acompanhado de um sorriso amarelo, evitam dividir o mesmo espaço, etc. Em circunstâncias mais extremas, chega-se à completa excomunhão social, sustentada numa figuração do outro como absolutamente abominável. Isso faz com que muita gente que nem dá tanta importância a essas distinções se veja obrigada a se posicionar antes mesmo de saber do que está falando, só para ganhar a confiança de quem almeja amizade.
Para solucionar o impasse há quem recorra aos clássicos. Cheguei a conhecer uma pessoa, que se dizia aristotélica, que defendia a seguinte fórmula, de acordo com a teoria das quatro causas:
- Bolacha é a forma, a causa formal. Já reparou que toda a bolacha é assim, ó, amassada? Dizia ele, fazendo um gesto de encontro vertical entre as palmas da mão. Já o Biscoito é a receita, a causa material, que não precisa sair achatado, como o biscoito de polvilho. O Biscoiteiro, demiurgo dessa maravilha, continuou enquanto retirava uma unidade do produto de seu pacote, é a causa eficiente… E, olhando para mim de um jeito artimanhoso, arrematou: finalmente, a causa final – e abocanhou de vez aquele objeto especulativamente indigesto.
Então se trataria de mais uma querela entre formalistas e materialistas? Pedi-lhe que me mostrasse a fonte de sua argumentação, ao que ele prontamente se dispôs, retirando a Metafísica da estante e me indicando o trecho em que o estagirita expõe sua tese. No entanto, notei que a causa formal – a quididade do ser –, para Aristóteles, não é apenas mais uma entre as quatro causas, sendo hierarquicamente superior às outras. Nisto, intuí o motivo de sua predileção pelo termo correspondente e fiquei frustrado. E com fome, não sei dizer de quê.

erupção

uma fenda quando aberta
deixa à mostra o que ao tato
nunca deixou de ser fato
mas que a visão encoberta

rasgam-se então os contratos
desde a cláusula mais pétrea
a termos que encenam tétricos
caprichos os mais abstratos

empertigam-se os profetas
- salve aos fortes morte aos fracos!
- nossa premissa é mais certa!

enquanto a lava arrebata
nossa condição deserta
sem medida correlata

Mariana-MG, outubro de 2017

Trechos da Fenomenologia do Espírito


“O botão desaparece da flor e poderia dizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-aí da planta, pondo-se como sua verdade em lugar da flor: essas formas não só se distinguem, mas também se repelem como incompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, todos são igualmente necessários. É essa igual necessidade que constitui unicamente a vida do todo. Mas a contradição de um sistema filosófico não costuma conceber-se desse modo; além disso, a consciência que apreende essa contradição não sabe geralmente libertá-la – ou mantê-la livre – de sua unilateralidade; nem sabe reconhecer no que aparece sob a forma de luta e contradição contra si mesmo, momentos mutuamente necessários.”
(Prefácio da Fenomenologia do Espírito, Tradução Paulo Meneses, Petrópoles, RJ: Vozes: Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012, p. 26)



“31 – [Das Bekannte] O bem-conhecido em geral, justamente por ser bem-conhecido, não é reconhecido. É o modo mais habitual de enganar-se e de enganar os outros: pressupor no conhecimento algo como já conhecido e deixá-lo tal como está. Um saber desses, com todo o vaivém de palavras, não sai do lugar – sem saber como isso lhe sucede. Sujeito e objeto etc.; Deus, natureza, o entendimento, a sensibilidade etc., são sem exame postos no fundamento, como algo bem conhecido e válido, constituindo pontos fixos tanto para a partida quanto para o retorno. O movimento se efetua entre eles, que ficam imóveis; vai e vem, só lhes tocando a superfície. Assim o apreender e o examinar consistem em verificar se cada um encontra em sua representação o que dele se diz, se isso assim lhe parece, se é bem-conhecido ou não.
32 – [Das Analysieren] Analisar uma representação, como ordinariamente se processava, não era outra coisa que suprassumir a forma de seu Ser-bem-conhecido. Decompor uma representação em seus elementos originários é retroceder a seus momentos que, pelo menos, não tenham a forma da representação já encontrada mas constituam a propriedade imediata do Si. De certo, essa análise só vem a dar em pensamentos, que por sua vez são determinações conhecidas, fixas e tranquilas. Mas é um ponto essencial esse separado, que é também inefetivo; uma vez que o concreto, só porque se divide e se faz inefetivo, é que se move. A atividade do dividir é a força e o trabalho do entendimento, a força maior e mais maravilhosa, ou melhor: a potência absoluta.
O círculo, que fechado em si repousa e retém como substância seus momentos, é a relação imediata e portanto nada maravilhosa. Mas o fato de que, separado de seu contorno, o acidental como tal – o que está vinculado, o que só é efetivo em sua conexão com outra coisa – ganhe um ser-aí próprio e uma liberdade à parte, eis aí a força portentosa do negativo: é a energia do pensar, do puro Eu.
A morte – se assim quisermos chamar essa inefetividade – é a coisa mais terrível; e suster o que está morto requer a força máxima. A beleza sem-força detesta o entendimento porque lhe cobra o que não tem condições de cumprir. Porém, não é a vida que se atemoriza ante a morte e se conserva intacta da devastação, mas é a vida que suporta a morte e nela se conserva, que é a vida do espírito. O espírito só alcança sua verdade na medida em que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto. Ele não é essa potência como o positivo que se afasta do negativo – como ao dizer de alguma coisa que é nula ou falsa, liquidamos com ela e passamos a outro assunto. Ao contrário, o espírito só é essa potência enquanto encara diretamente o negativo e se demora junto dele. Esse demorar-se é o poder mágico que converte o negativo em ser. | Trata-se do mesmo poder que acima se denominou sujeito, e que ao dar, em seu elemento, ser-aí à determinidade, suprassume a imediatez abstrata, quer dizer, a imediatez que é apenas essente em geral. Portanto, o sujeito é a substância verdadeira, o ser ou a imediatez – que não tem fora de si a mediação, mas é a mediação mesma.”
(Prefácio da Fenomenologia do Espírito, Tradução Paulo Meneses, Petrópolis, RJ: Vozes: Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012, p. 43-44)